Sociedade Brasileira de Nutrição Funcional – Boletim Mensal 2/2012
Dra. Neiva Souza
Os açúcares são caracterizados, quimicamente, como um grupo de compostos formados basicamente por moléculas de carbono, hidrogênio e oxigênio, subdivididos em monossacarídeos (glicose, frutose e galactose) e dissacarídeos, como a sacarose (glicose + frutose) e maltose (glicose + glicose) e lactose (glicose + galactose)1.
Dados secundários da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009 evidenciaram um excesso no consumo alimentar de açúcares livres (açúcar de mesa – ou de adição –, rapadura, mel e açúcares presentes em alimentos processados) pela população brasileira em todas as regiões, principalmente Sul e Sudeste2.
Este consumo elevado, principalmente de açúcares de adição e produtos industrializados ricos neste tipo de açúcar refinado é um dos fatores alimentares associados ao aumento da incidência e risco de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), tais como diabetes, doenças cardiovasculares, câncer3, resistência à insulina, hipertensão e hipertrigliciridemia4.
Adicionalmente ao impacto do consumo de açúcares sobre a etiologia de determinadas DCNT, recentemente tem sido relatado possíveis efeitos tóxicos atribuídos a este alimento.
Um recente artigo publicado pela revista Nature, descreve que a frutose pode desencadear processos que culminam na hepatotoxicidade, déficit cognitivo ou outras doenças, como o câncer.
O artigo ainda reporta que o açúcar pode causar danos ao DNA, aos lipídeos e proteínas, por meio da ligação não enzimática destas moléculas à frutose. Portando, os autores consideram este monossacarídeo e suas principais fontes (como sacarose e xarope de milho rico em frutose, muito utilizados pela indústria como adoçantes em diversos produtos) como um perigo à sociedade, justificando o controle de sua ingestão de maneira análoga à restrição de fumo e álcool já realizada pelas autoridades em saúde pública4.
Para além destes fatores, o açúcar ainda pode estar contaminado por hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), compostos formados pela queima incompleta de material orgânico, que possuem potencial carcinogênico e genotóxico5. Pesquisas realizadas no Brasil constataram a presença de HPAs em amostras de cana-de-açúcar6, bem como no açúcar de cana, que foi considerado a segunda maior fonte alimentar deste contaminante7.
O processo de refinamento também pode resultar na presença de contaminantes no açúcar. Algumas pesquisas indicam que parte do dióxido de enxofre, utilizado no processo de clareamento, permanece no açúcar na forma de sais. Este composto é altamente tóxico, sendo considerado cancerígeno8. Outros possíveis efeitos incluem anafilaxia, urticária, angioedema, hipotensão, distúrbios do trato gastrointestinal (como náuseas, diarreia e irritação gástrica local),
cefaleia, distúrbio do comportamento, erupções cutâneas9 e broncoespasmos em indivíduos asmáticos sensíveis. Além disso, a ingestão de sulfitos pode acarretar redução da biodisponibilidade de alguns nutrientes, incluindo vitaminas B1, B9, B6 e nicotinamida, o que, por conseguinte, compromete a qualidade nutricional dos alimentos que passam pela sulfitação10.
O açúcar refinado ainda pode representar um gatilho tóxico de maneira indireta, uma vez que ocasiona uma maior fermentação pelas bactérias do intestino grosso, formando gases e/ou certas substâncias tóxicas, prejudicando a microbiota intestinal benéfica, o que contribui para a disbiose e para a alteração da permeabilidade intestinal e para a disbiose11. Esta alteração na integridade da mucosa intestinal reduz a proteção contra a passagem de antígenos, patógenos, exo e endotoxinas, deixando o indivíduo mais susceptível a translocação destas moléculas para a
corrente sanguínea, o que poderá refletir em diversos efeitos deletérios, como resposta inflamatória sistêmica11,12.
Os alimentos refinados, como o açúcar branco, ainda podem potencializar o estado próinflamatório por serem considerados alimentos inflamatórios tendo como base o IF (Inflammation Factor Rating), o qual indica valores negativos para alguns tipos de açúcar, que pode variar de -77 a -4213. Na inflamação crônica, ocorre a liberação de polipeptídeos e citocinas, mediadores que podem desencadear efeitos deletérios aos tecidos, implicando, de maneira importante, na patogênese de diversas doenças crônicas e outras desordens, tais como doenças cardiovasculares,
aterosclerose, aumento da adiposidade abdominal e resistência à insulina14.
Além disso, a glicotoxicidade é outro fator que pode caracterizar o açúcar como um gatilho tóxico. O excesso no consumo de carboidratos de alto índice glicêmico, como o açúcar refinado, pode resultar em um quadro de hiperglicemia crônica15, que por sua vez poderá induzir a glicotoxicidade, caracterizada por alta produção de radicais livres, com alteração estrutural e funcional de proteínas, lipídios e citocinas, danos ao DNA e lesões em células, como as do endotélio vascular, retina, glomérulos renais e nervos periféricos16. No pâncreas, a glicotoxicidade pode lesionar ou destruir as células β, comprometendo a produção de insulina17. A hiperglicemia crônica ainda pode acarretar na glicação de proteínas ou enzimas envolvidas no metabolismo da glicose; e na redução em número e função dos transportadores de glicose GLUT-4 e GLUT-2 nas células musculares e β pancreáticas, respectivamente18.
À parte das considerações acerca do açúcar refinado, vale ressaltar que o açúcar mascavo também pode impactar negativamente sobre o organismo humano. Um estudo, que realizou análises microbiológicas do açúcar mascavo, identificou uma importante contaminação por bactérias mesófilas, bolores e leveduras, indicando comprometimento da qualidade deste tipo de açúcar19.
Em relação à infecção fúngica, os açúcares simples podem ser caracterizados como um fator predisponente, uma vez que as leveduras tem a capacidade de fermentar o açúcar em moléculas de álcool, contribuindo para o aumento do crescimento destes micro-organismos, podendo acarretar efeitos prejudiciais ao organismo, como maior susceptibilidade à alergias e hipersensibilidades alimentares20, carcinogenicidade, imunossupressão e ação como disruptores endócrinos21.
Todas estas evidências em conjunto permitem verificar a importância de uma investigação dos possíveis efeitos do açúcar como um gatilho tóxico, por meio de um rastreamento metabólico detalhado, considerando a individualidade bioquímica de cada paciente. Assim será possível delimitar, dentro de uma conduta nutricional adequada para cada caso, a possibilidade de restrição ou substituição do açúcar na dieta, tendo como base os diversos efeitos deletérios que
podem estar associados ao excesso no consumo deste alimento.
Referências Bibliográficas
1. LEVY, R.B.; CLARO, R.M.; BANDONI, D.H. et al. Disponibilidade de “açúcares de adição” no Brasil: distribuição, fontes alimentares e tendência temporal. Rev Bras Epidemiol; 15(1):3-12, 2012.
2. LEVY, R.B.; CLARO, R.M.; MONDINI, L. et al. Distribuição regional e socioeconômica da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil em 2008-2009. Rev Saúde Pública; 46(1):6-15, 2012.
3. LEVY, R.B.; CLARO, R.M.; MONTEIRO, C.A. Aquisição de açúcar e perfil de macronutrientes na cesta de alimentos adquirida pelas famílias brasileiras (2002-2003). Cad Saúde Pública; 26(3):472-480, 2010.
4. LUSTIG, R.H.; SCHMIDT, L.A.; BRINDIS, C.D. The toxic truth about sugar. Nature; 482:27-29, 2012.
5. WHO (World Health Organization). Rome. Summary and conclusions of the sixty-fourth meeting of
the Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives. 2005.
6. SERRA, G.E.; PUPIN, A.M.; TOLEDO, M.C.F. Ensaios preliminares sobre a contaminação da cana-de-açúcar
e derivados por hidrocarbonetos policíclicos aromáticos. Boletim da Sociedade Brasileira de Ciência e
Tecnologia de Alimentos; 29(2):134-137, 1995.
7. CAMARGO, M.C.R. Avaliação da ingestão de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos através da dieta.
267 p. Tese (Doutor em Ciência de Alimentos) – Faculdade de Engenharia de Alimentos, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
8. ARAÚJO, F.A.D. Processo de clarificação do caldo de cana pelo método da bicarbonatação. Revista
Ciências & Tecnologia; 1:1-6, 2007.
9. FAVERO, D.M. Clarificação do caldo de cana-de-açúcar pelo processo de carbonatação. Curitiba: UFPR,
2011. 80.p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, 2011.
10. FAVERO, D.M.; RIBEIRO, C.S.G.; AQUINO, A.D. Sulfitos: importância na indústria alimentícia e seus
possíveis malefícios à população. Segurança Alimentar e Nutricional; 18(1):11-20, 2011.
11. Almeida, L.B.; Marinho, C.B.; Souza, C.S. et al. Disbiose intestinal. Rev Bras Nutr Clin; 24(1):58-65, 2009.
12. PÓVOA, H. A Chave da longevidade: novos tratamentos para aprevenção de doenças, técnicas para
retardar o envelhecimento, arevolução da medicina ortomolecular. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
13. INFLAMMATION FACTOR RATING. Disponível em: <http://www.inflammationfactor.com>. Acesso em:
22/06/2012.
14. PASCHOAL, V.; NAVES, A.; FONSECA, A.B.L. Nutrição Clínica Funcional: dos princípios à prática clínica.
São Paulo: Valéria Paschoal Editora Ltda., 2007.
15. PEIXOTO, J.C.; FEIJÓ, Â.P.; TEIXEIRA, A.B.S. et al. BENEFÍCIOS DA SOJA NO CONTROLE DA OBESIDADE.
Revista Eletrônica Novo Enfoque; 12(12):47-67, 2011.
16. BROWNLEE, M. The pathobiology of diabetic complications. Diabetes; 54(6):1615-1625, 2005.
17. LEIBOWITZ, G.; YULI, M.; DONATH, M.Y. et al. Beta-cell glucotoxicity in the Psammomys obesus model
of type 2 diabetes. Diabetes; 50:113-117, 2001.
18. PEREIRA, L.O.; FRANCISCHI, R.P.; LANCHA JR, A.H. Obesidade: Hábitos Nutricionais, Sedentarismo e
Resistência à Insulina. Arq Bras Endocrinol Metab; 47(2):111-127, 2003.
19.PARAZZI, C.; JESUS, D.A.; LOPES, J.J.C. et al. Análises microbiológicas do açúcar mascavo. Biosci J;
25(3):32-40, 2009.
20. SHAW, W. Tratamentos biológicos para o autismo e PPD. São Paulo: Ed. Atlantis Ltda., 2002, p. 58-79.
21. FRINK-GREMMELS, J. Mycotoxins: their implications for human and animal health. The Veterinary
Quarterly; 21(4):115-120, 1999.